domingo, 19 de dezembro de 2010

Página 2

Ela sorria.
Tirou as bicas que nós tinhamos pedido e, ao mesmo tempo, sorria um sorriso alegre, com um ar jovial, apesar de ter desenhadas no rosto as marcas do cansaço. Estava a cantarolar a canção que passava na rádio, mas, já não sei a que propósito, interrompeu a música para falar da vida.

Ela sorria.
E contou-nos que aquele trabalho lhe dá 530€ por mês e ela fica com quatrocentos e tal líquidos e sobram-lhe cento e tal euros após pagar a letra do carro. Depois compra comida para ela e para os filhos e fica com 20€ para as despesas extra.

Ela sorria.
E eu, enquanto saboreava o café, não conseguia digerir aqueles números tão distantes da minha realidade. Senti-me perturbado. Senti-me abalado.

Ela sorria.
Como se a vida não lhe desse outra alternativa a não ser sorrir em jeito de desafio - quase em jeito de troça até - perante todas as dificuldades. E eu, de coração apertado, não sorri. Mas decidi ser mais consciente e manter os olhos abertos para não ignorar os contrastes que existem nesta sociedade injusta. E percebi que se aquela senhora sorria com 20€ por mês para despesas extra, talvez os extras não sejam assim tão importantes.

Ela sorria.
E aquele sorriso desconcertante obriga-me a reflectir, obriga-me a ver a vida em perspectiva. Mas quando eu agora recordo o sorriso desta mulher já não sinto perturbação. Sinto-me, de alguma forma, inspirado por ele.

Que a vida me perturbe e me abale assim muitas vezes!

Sem comentários:

Enviar um comentário