quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

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Não me recordo de ter conhecido antes dos 18 anos alguém que fosse vegetariano e, talvez por isso, quando entrei na faculdade achava muito estranho o conceito de comida macrobiótica. E julgava que os vegetarianos eram gente tonta, com um parafuso a menos, adeptos dos partidos de esquerda e, provavelmente, consumidores de drogas leves. Sim, na minha cabeça arrumava todas estas coisas no mesmo saco. Não sei porque é que pensava assim, mas tenho impressão que algures no decorrer do meu crescimento tomei como verdade uma mentira altamente nociva: tudo o que é diferente de mim, tudo o que é estranho, tudo o que eu não entendo, é mau. Quando esta mentira se torna a lente através da qual analisamos as outras pessoas, corremos o risco de nos julgarmos superiores. Quando esta mentira ganha raízes nos nossos corações, ela produz frutos altamente venenosos: preconceitos.

Uma vez fui almoçar à cantina velha com o Tó e a Lígia. Como eles são vegetarianos e eu queria estar na companhia deles optei por ir também para a fila da comida macrobiótica. Se a minha memória não me atraiçoa, almocei omelete de legumes e sopa macrobiótica, uma sopa famosa pelo seu aspecto de água suja onde nadam objectos não identificáveis. Essa foi, segundo a minha mentalidade da altura, uma experiência muito arriscada. E não posso dizer que tenha corrido bem porque, apesar de não ter detestado a comida, também não gostei o suficiente para desfazer o meu preconceito.

Durante os anos que se seguiram não repeti a experiência e alimentei inconscientemente o preconceito. Irritava constantemente os meus amigos vegetarianos com conversas sobre carne. Criava piadas acerca dos princípios deles e julgava-me muito engraçado, mas a minha postura e as coisas que eu dizia estavam impregnadas de uma altivez e arrogância absurdas. Não sei como é que os meus amigos me aturaram. Se calhar existe alguma correlação entre a não ingestão de carne e a longanimidade.

Até que, de um dia para o outro, sem reflectir naquilo que estava a fazer, comecei a optar pela refeição macrobiótica. Os meus amigos admiraram-se e julgaram que eu me tinha passado. E de facto não tenho nenhuma justificação para a minha súbita mudança de gosto e de atitude. É verdade que essa mudança aconteceu depois de ter passado uma semana num acampamento de verão em que comi muitas coisas não identificáveis. Mas isso, por si só, não constitui uma explicação racional para a minha mudança. Julgo mesmo que não existe nenhuma explicação racional, embora possa avançar uma explicação semi-racional, vá. Eu acredito em Deus. E acredito que Ele se preocupa comigo e a partir de certa altura comecei a acreditar que Ele quer fazer de mim uma pessoa mais bonita. A minha inclinação repentina para a cozinha macrobiótica surgiu nessa fase em que eu comecei a acreditar que Deus quer ter um papel activo na transformação do David e comecei a pedir-Lhe que tivesse mesmo esse papel. Acredito que apeser de eu limitar muito a acção dele na minha vida, Ele está a responder ao meu pedido e mudanças deste género fazem parte da resposta dele. Consigo imaginar Deus a resolver estas situações com um toque de humor: "Ai queres ser uma pessoa mais bonita? Então toma lá um prato de tofu."

Eu sei que ultrapassar este preconceito é pouco relevante tendo em conta que continuo a carregar outros preconceitos absurdos e talvez mais venenosos do que este. Venenosos não só para as vítimas dos preconceitos, mas também para mim próprio. Porque os preconceitos impedem-nos de apreciar a beleza que existe na diversidade; os preconceitos aprisionam-nos e impedem-nos de crescer. Chutar para longe o meu preconceito relativamente à comida macrobiótica é como limpar uma mancha de sujidade num casaco que tem centenas ou milhares de manchas. Eu continuo a ser um casaco com muitas manchas (e com capuz! se eu fosse um casaco gostava de ser um casaco de fato-treino com capuz!).

Mas agora enquanto saboreio um croquete de soja ou um bife de seitan penso que talvez eu não seja um caso completamente perdido. Pode ser que à medida que eu me disponho a ir mais vezes à máquina e a experimentar diferentes programas de lavagem (seja lá o que for que esta metáfora signifique) me torne um casaco mais limpo. Pode ser que à medida que vou meditando nestas coisas eu abra mão de outros preconceitos parvos e um dia olhe para trás e conclua: "Caramba, Deus fez mesmo de mim uma pessoa mais bonita!". Tenho essa esperança.

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