Vamos assumir que Deus se tornou homem através de Jesus Cristo e que morreu e ressuscitou, conforme relatam os evangelhos. Se assim foi, há uma pergunta que se impõe: porquê?
Comecemos pelo início: há algo de errado com o mundo, há algo de errado com o homem, há algo de errado comigo. Esta é a premissa da qual pretendo partir e creio que não é necessário muito esforço para que todos concordemos com ela. Todos nós constatamos facilmente que em muitos momentos da nossa vida somos egocêntricos, movidos pelo nosso próprio interesse e ambição. E, embora isto pareça um enorme salto lógico, é fácil concluir que é desse egocentrismo que nascem todos os grandes problemas do mundo: a ganância, o atropelo às necessidades dos outros, a violência, a corrupção, etc. Eu e tu somos responsáveis por estas coisas. Eu e tu praticamos estas coisas. Talvez não seja em grande escala, talvez não seja prejudicial para quem está à nossa volta ao ponto de abrir noticiários, talvez até nem tenhamos consciência de que as praticamos. Mas acredito que nenhum de nós escapa de cair nelas.
Há quem entenda que o homem está condenado a viver neste paradigma. Dizem que é a consequência do “gene egoísta”. Há também quem acredite que cabe à humanidade sair deste paradigma pelo seu próprio mérito. É isso que defende o humanismo enquanto ideologia que procura a disseminação de valores universais de ética e justiça, rejeitando qualquer interferência exterior ao homem para definir a base desses valores. (O que levanta a questão lateral: se não há interferência exterior ao homem, onde é que reside o padrão para determinar tais valores?)
Entretanto parece-me que quer a proposta dessa teoria genética (condenando o homem ao egoísmo como forma inata de preservar a espécie) quer a proposta do humanismo no seu pior[1] são vazias de esperança. A primeira reduz o homem a um ser que, apesar de racional, é incapaz de usar essa racionalidade para o bem comum, é incapaz de ter gestos de puro altruísmo e é incapaz de amar. A segunda, por muito bem-intencionada que seja, tem a história da humanidade como prova contra si. A história da humanidade está repleta de episódios que demonstram que a humanidade não se pode salvar a si mesmo. As guerras sucedem-se às guerras sem que aprendamos com elas. A riqueza está distribuída de uma forma chocante e tudo o que se faz para alterar a situação é pouco e é, muitas vezes, hipócrita. As desproporções são imensas e em muitos casos são perpetuadas pelos mesmos que defendem os valores do humanismo. O sistema está podre e por muito que alguns sonhem mudá-lo falta-lhes o poder para tal.
Até porque o problema do sistema começa dentro de cada um de nós. Não podemos querer mudar o mundo sem começar por reparar a nossa própria identidade. Identidade. Esta é a palavra-chave porque creio que é disso que se trata: a humanidade, como um todo, e cada homem, por si só, padecem de um grave problema de identidade.
O que o cristianismo tem para oferecer[2] é uma alternativa a ambas as propostas. A proposta do cristianismo é esta: a mudança é possível e a mudança não resulta do nosso mérito e capacidade, mas de um relacionamento com Deus através do Jesus morto e ressurrecto. Segundo a narrativa bíblica, Deus criou o homem com uma identidade que reflectia a sua própria identidade. Com capacidade para amar, para apreciar a vida e para se centrar nos outros e não em si mesmo. Ao mesmo tempo concedeu ao homem liberdade para escolher o seu próprio caminho e uma clara noção dos caminhos do bem e do mal. O homem fez – faz – uso dessa liberdade para optar pelo caminho do mal. É a esta opção errada que chamamos pecado. O pecado espalhou-se como um vírus incontrolável e a identidade do homem ficou profundamente afectada. Ao ponto de muitas vezes já nem termos a tal noção do bem e do mal. Passaram a coexistir dentro de cada um de nós duas forças opostas: a capacidade de amar, marca indelével daquele que nos criou, e o egocentrismo, marca da nossa identidade manchada.
Para reparar esta crise de identidade foi necessário que o próprio Deus interviesse e se fizesse homem em Jesus Cristo, que morresse e que ressuscitasse para pagar a culpa pelas nossas escolhas erradas.
Existir um Deus que nos ama ao ponto de tomar a forma humana para sofrer por nós possibilitando assim que a nossa crise de identidade seja reparada? Que sentido é que isto faz? Aparentemente não faz sentido nenhum. Mas se o cristianismo fosse apenas uma sequência de passos lógicos não necessitávamos de fé. Ser ou não cristão passaria apenas pelo esforço intelectual necessário para compreender as razões por trás de todas estas coisas. Entretanto Deus planeou as coisas de outra maneira. Decidiu que a reconciliação com Deus passa pela fé e não pelo esforço intelectual. Porquê? Bem, não pretendo ter resposta para tudo, mas talvez Deus deseje obrigar o homem a um exercício de humildade: acreditar numa solução que transcende a compreensão humana envolve o reconhecimento de que não somos auto-suficientes e, por inerência, o reconhecimento da soberania de Deus.
O mais espectacular é que a fé traz esperança, sentido à vida e à própria Bíblia e marca o início de um processo de transformação de identidade.
Os primeiros convertidos ao cristianismo foram incompreendidos e perseguidos pelos seus contemporâneos porque a sua fé era extremamente esquisita – herética até. Paulo, um dos mais notáveis evangelistas e teólogos da história, escreveu sobre este assunto numa carta dirigida aos cristãos da cidade de Corinto. Disse ele que a mensagem cristã era um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos. (I Coríntios 1:23)
E Paulo sabia bem o que estava a dizer porque ele próprio tinha sido um dos perseguidores mais acérrimos dos cristãos. Movido por um zelo radical, Paulo entendia que ao perseguir e mandar matar os cristãos estava a cumprir a vontade do Deus de Israel. Até que foi surpreendido pelo Deus a quem julgava servir. No livro de Actos, capítulo 9, é-nos contada a história da conversão de Paulo a caminho da cidade de Damasco. De repente, o mesmo Paulo que “não pensava se não em ameaças de morte contra os discípulos de Jesus”, torna-se ele próprio um discípulo. A conversão de Paulo é um acontecimento misterioso e delicioso. Para Paulo, a mensagem cristã era inconcebível. A ideia de que Jesus é Deus soava-lhe a loucura e a blasfémia. Mas um dia enquanto viajava ele é atingido pela graça e a vida dele sofre uma transformação radical.
Muitos de nós somos como Paulo. É inconcebível que Jesus seja Deus. É inconcebível que a mensagem cristã seja “a” verdade. É inconcebível que Deus nos ame ao ponto de proporcionar uma solução para cada um de nós que não exige nada em troca, a não ser a fé. A graça de Deus, por não exigir nada em troca, desafia a tendência humana para negociar todas as coisas. É desconcertante. E maravilhosa como lhe chamou John Newton.
Por muito inconcebível que a graça nos pareça talvez ela também comece a parecer-nos fascinante e fonte de esperança. Talvez a nossa mente não consiga compreender o alcance do acto gracioso de Deus, mas podemos aceitá-lo no nosso coração, pela fé. Essa aceitação marca o primeiro passo da caminhada cristã. O primeiro passo numa caminhada que visa a nossa transformação para sermos pessoas novas, com a nossa identidade restaurada. Pessoas mais parecidas com Jesus, o nosso mestre, o nosso exemplo, o nosso Rei.
[1] Chamo-lhe humanismo no seu pior porque creio que o humanismo, num sentido mais lato, tem um lado bom e totalmente compatível com o cristianismo: a valorização do homem e da sua liberdade, bem como o princípio da igualdade.
[2] Para sermos rigorosos devemos substituir a expressão “o que o cristianismo tem para oferecer” pela expressão “o que Deus tem para oferecer através de Jesus Cristo”. O cristianismo em si mesmo não tem nada para oferecer. O cristianismo deve ser encarado como um movimento de seguidores de Jesus Cristo e não como uma filosofia, ideologia ou mesmo religião alternativas.
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