Este versículo foi o ponto de partida quando comecei a alinhavar estas ideias: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça…” (Mateus 6:33) Passei centenas de vezes por este versículo sem nunca formular a pergunta óbvia: o que é que Jesus quis dizer com isto? O que significa “buscar primeiro o Reino de Deus e a sua justiça”? E se essa deve ser a nossa prioridade como é que ela se traduz em termos práticos na nossa vida? Foram estas questões que deram o mote para os textos que agora apresento. Depois decidi que iria relacionar o tema do “Reino de Deus” com a Páscoa. E não foi necessário grande esforço ou imaginação. Acredito mesmo que a Páscoa marca a inauguração do Reino de Deus na terra.
O que é, então, o Reino de Deus? A expressão “Reino de Deus” foi usada por Jesus muitas vezes quando Ele ensinava os discípulos ou quando apresentava parábolas ao povo. É fácil assumirmos como premissa a ideia de que esta expressão se refere apenas ao paraíso, onde Deus reina sem oposição. Mas se assumirmos essa premissa então muito pouco daquilo que Jesus disse se aplica à nossa vida na terra, uma vez que ele passou a maior parte do tempo a ensinar acerca deste reino. Eu não vou assumir essa premissa. Acredito que o Reino de Deus que Jesus tinha em mente foi inaugurado através da sua morte e da sua ressurreição e que a mensagem de Jesus é válida para as pessoas de carne e osso aqui na terra. Não acredito, por exemplo, que o sermão do monte seja uma lista de utopias irrealizáveis. Acredito que devemos prestar atenção à forma como Jesus ensinou os discípulos e retirar desse ensino princípios para a nossa vida enquanto discípulos do mesmo mestre no século XXI. E ainda que sintamos que ao seguir o sermão do monte estamos a nadar contra a corrente, devemos fazê-lo. Com teimosia e graça.
Para os judeus que habitavam a Palestina no século I, a expressão Reino de Deus estava carregada de significado político e agitaria decerto as expectativas do povo. Jesus pegou numa expressão que lhes dizia muito, mas aplicou-a de uma forma extraordinariamente surpreendente. Muitos dos seus discípulos esperavam que ele trouxesse uma solução política. Ao invés, Jesus deixou-se morrer numa cruz, ressuscitar e ascender aos céus. Aparentemente em termos políticos ficou tudo na mesma após a passagem de Jesus pela terra. Mas acredito que foi mesmo só aparentemente. Porque o reino inaugurado por Jesus está presente “assim na terra como no céu”. É um reino sem fronteiras, é um reino sem parlamento, é um reino formado por gente de todas as etnias, nações, línguas e culturas. Formado por todos aqueles que vivem aos pés da cruz. Por todos aqueles que reconhecem na Páscoa o ponto crucial da história da humanidade. É um reino subversivo que se opõe aos impérios vigentes não através da força, mas através de gestos de graça, inspirados pelo gesto do nosso Rei.
Como é que posso tornar mais concreto o que estou a dizer? Como é que posso explicar mais directamente o que é o Reino de Deus? Para explicar melhor socorro-me de um excerto do livro True Story: A Christianity worth believing in (este livro de James Choung apresenta um excelente resumo da cosmovisão cristã enquadrado numa história ficcionada pelo autor):
“O Reino de Deus não está numa nação ou num governo, mas sim onde as pessoas que confiam e seguem Jesus se juntam. É aí que o paraíso está. O Reino de Deus está ‘na terra assim como no céu’ quando os pobres são alimentados, os nus são vestidos, os doentes são curados, os relacionamentos – entre as nações, uns com os outros, com Deus – são restaurados. Está aqui. Está à nossa volta.”
Neste excerto parece ecoar o Salmo 146, um Salmo que exibe bem a justiça que Deus deseja ver implementada no seu Reino:
“Feliz o que recebe auxílio do Deus de Jacob,
o que põe a sua esperança no Senhor, seu Deus.
Ele criou o céu, a terra e o mar e tudo o que contêm.
Ele mantém-se fiel para sempre,
e julga a favor dos oprimidos.
O Senhor dá alimento aos que têm fome
e dá liberdade aos prisioneiros.
O Senhor dá vista aos cegos e reanima os que desfalecem;
Ele ama os que são rectos.
Protege os que vivem em terra estranha
e ampara os órfãos e as viúvas,
mas faz com que os pecadores se percam no seu caminho.
O Senhor reinará eternamente!
O teu Deus, ó Sião, reinará para todo o sempre!
Aleluia!”
A agenda do Reino de Deus é esta: reconciliação e restauração. Buscar primeiro o Reino de Deus é dedicar as nossas vidas, o nosso esforço, o nosso coração, o nosso tempo e os nossos talentos a esta agenda. Esta era uma convicção bem presente entre os primeiros cristãos, como atesta este excerto da carta de Paulo aos cristãos de Corinto:
“Isto é obra de Deus que, em Cristo, nos reconciliou consigo e nos chamou a colaborar nessa missão de reconciliação. Assim, Deus, por meio de Cristo, reconciliou consigo a Humanidade, não tendo em conta os seus pecados e encarregando-nos de anunciar a palavra da reconciliação. Portanto, somos embaixadores de Cristo e é Deus que exorta por nosso intermédio.”(II Coríntios 5: 18-20)
Portanto, a reconciliação com Deus através da fé marca o início de uma vida com um novo propósito: somos chamados para colaborar na missão de reconciliação. Como embaixadores de Cristo na terra. Como cidadãos do Reino de Deus, num mundo repleto de reinos terrenos, de impérios, de lobbies, de agendas que se opõem à agenda do Reino de Deus.
Antes de terminar este texto há um ponto que quero abordar. Quem leu a minha reflexão acerca da graça pode detectar aqui uma possível incoerência. Por um lado, a graça de Deus está disponível para resolver o nosso problema de identidade e só precisamos de a aceitar pela fé. Por outro lado eu estou a sugerir que os seguidores de Cristo devem depois “buscar primeiro o Reino de Deus” com todas as implicações que isso tem nas suas vidas. A pergunta que pode surgir é: mas afinal não basta a fé?
Bom, é a graça que marca a nossa reconciliação com Deus através de um favor imerecido e gratuito expresso na morte e ressurreição de Jesus. Para que Deus nos considere reconciliados com Ele, basta a fé, sim. Mas se é verdade que somos salvos pela fé e não pelas boas obras, também é verdade que somos salvos para realizar boas obras. A reconciliação com Deus marca o início de um processo que visa transformar-nos para recuperarmos a nossa identidade original. E os frutos desse processo são as boas obras, obras de altruísmo, praticadas não por imposição ou para alcançar seja o que for, mas porque Deus liberta-nos do nosso egocentrismo e dá-nos entendimento para perceber que é no altruísmo que reside o sentido da vida e até, deixem-me ser romântico, a felicidade.
Não há propriamente uma dualidade entre a fé e as obras. Há uma complementaridade: a fé salva-nos para as obras. Esta questão já devia ser alvo de debate entre os primeiros seguidores de Cristo. Ao ponto de um cristão chamado Tiago, uma autoridade respeitada na igreja daquele tempo, ter tido necessidade de escrever o seguinte: “Que importa, meus irmãos, alguém dizer que tem fé se não a põe em prática? Será que essa fé lhe trará a salvação? Imaginem que algum irmão ou irmã não tem nada que vestir e lhe falta o necessário para comer, cada dia. Poderão dizer-lhes: «Vão em paz! Hão-de encontrar com que se aquecer e matar a fome!» Mas se não lhes dão aquilo de que eles precisam, de que valem essas boas palavras? Do mesmo modo, a fé, se não é posta em prática, está morta.” (Tiago 2:14-17)
Estou convicto que mais do que fundar uma religião de crentes – isto é, de gente que acredita na obra redentora de Cristo – Jesus pretendeu criar um movimento de seguidores. Crer nas boas novas é mais do que fazer delas uma base de fé. Diria até que, à luz das palavras de Tiago, podemos encarar o verbo “crer” como sendo um verbo transitivo, ou seja, um verbo que implica uma acção que influencia outras pessoas.
Como diz Donald Miller em Blue Like Jazz[1]: “Aquilo em que eu acredito não é aquilo que eu digo que acredito; aquilo em que eu acredito é aquilo que faço.”
[1] Este é de leitura obrigatória.
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