Tendo compreendido o propósito do sacrifício de Jesus, corremos o risco de não levarmos totalmente a sério as palavras que ele proferiu. É fácil julgarmos que a sua mensagem é apenas uma mensagem de cariz espiritual e que a sua obra de redenção visa apenas reparar a nossa crise de identidade num sentido abstracto que não tenha implicações práticas nas nossas vidas. Tem o seu quê de tentador pensar que o Reino de Deus tem apenas a ver com o paraíso e com a vida após a morte. Mas não creio que seja assim. Acredito que Jesus deixou ensinos válidos para a vida dos seus primeiros discípulos, bem como para a vida dos seus discípulos do século XXI.
Neste sentido, coloca-se uma questão: como interpretar a cruz e a ressurreição de Jesus à luz das palavras que deram início ao seu ministério: “Arrependam-se pois o Reino de Deus está a chegar”? (Mateus 4:17) O que é que Jesus pretendia dizer com o Reino de Deus está a chegar?
Nos impérios do mundo, os reinados estabelecem-se através da opressão e da perseguição de todos os opositores. É a força que prevalece. Na Palestina do primeiro século era a força dos exércitos romanos. Nos nossos dias passa muito pela força dos sistemas económicos.
Ora se pensarmos que o Reino de Deus não se rege pelos padrões humanos, talvez seja de supor que o Reino de Deus se estabeleceu através de um acontecimento pouco usual… Os chefes de estado das nações terrenas tomam posse em cerimónias repletas de pompa. Jesus, em contraste, tomou posse através da sua morte e ressurreição.
No fantástico livro Jesus for President de Shane Claiborne e Chris Haw (um livro que explica muito melhor do que eu todas estas ideias que estou a tentar partilhar) a analogia entre a crucificação de Jesus e a coroação dos imperadores romanos ganha contornos surpreendentes:
A coroação e procissão de César:
1. 1) A Guarda Pretoriana (seis mil soldados) juntava-se no Pretório. O futuro César era levado para o meio do grupo.
2. 2) Os guardas iam ao templo de Jupiter Capitolinus, traziam uma túnica roxa e colocavam-na no candidato. Ao candidato era também dada uma coroa feita de ouro em forma de folhas de oliveira e um ceptro que simbolizava a autoridade de Roma.
3. 3) César era grandemente aclamado pela Guarda Pretoriana como soberano e triunfante.
4. 4) Começava uma procissão através das ruas de Roma liderada pelos soldados. No meio estava César. Atrás de si seguia um boi para ser sacrificado, cuja morte e sangue marcariam a entrada de César no panteão divino. A caminhar junto ao boi seguia um escravo que carregava um machado para matar o boi. Alguns testemunhos dão conta que algumas pessoas espalhavam incenso doce ao longo da procissão.
5. 5) A procissão movia-se para o monte mais alto de Roma, o monte do Capitólio. Neste monte está o templo do Capitólio.
6. 6) O candidato ficava diante do altar do templo e era oferecida, pelo escravo, uma taça de vinho misturado com mirra. Ele pegava nela como se fosse aceitá-la mas, depois, devolvia a taça ao escravo. O escravo também a rejeitava e depois o vinho era derramado sobre o altar ou sobre o boi. Logo depois, o boi era morto.
7. 7) O futuro César chamava o segundo na hierarquia do império para a sua direita e o terceiro para a sua esquerda. Depois os três juntos subiam ao trono do Capitólio.
8. 8) A multidão aclamava o novo imperador. Para selar a aprovação divina, os deuses enviavam sinais como um bando de pombas ou um eclipse solar.
A coroação e procissão de Jesus:
1. 1) Jesus foi levado ao Pretório em Jerusalém. E toda a companhia de soldados (pelo menos 200) juntou-se lá.
2. 2) Os soldados trouxeram a Jesus uma coroa (de espinhos), um ceptro (uma velha cana) e uma túnica roxa.
3. 3) Sarcasticamente, os soldados aclamaram, troçaram e prestaram homenagem a Jesus.
4. 4) A procissão começou. Mas em vez de um boi, o futuro rei e Deus tornou-se o sacrifício. Mas ele não conseguia carregar o instrumento da morte e, ao mesmo tempo, ser o sacrifício. Por isso mandaram parar Simão e deram-lhe a cruz para carregar.
5. 5) Jesus foi levado ao Gólgota. (Em aramaico, Gólgota não significa exactamente o monte da caveira – isso é Calvário. Gólgota significa Monte da Cabeça, tal como o monte do Capitólio Romano).
6. 6) Foi oferecido vinho a Jesus e ele recusou. Logo depois está escrito: “E eles crucificaram-no”.
7. 7) Depois vem o relato daqueles que foram crucificados à sua direita e à sua esquerda. (A palavra usada para eles – lestes – significa terroristas ou insurrectos.)
8. 8) Jesus foi novamente aclamado, em troça, e um sinal divino confirmou a presença de Deus (a cortina do templo rasgou-se em duas). (Noutros testemunhos é dito que o céu ficou escuro, sepulcros abriram-se e mortos ressuscitaram.)
Podemos encarar a cruz apenas como um mal necessário para nos reconciliar com Deus. Ou, tendo em conta esta analogia e tendo em conta os ensinos de Jesus, podemos encará-la como um acto ainda mais abrangente, ainda mais significativo e profundo. Esta ideia é expressa por John Howard Yoder: “A cruz não é um desvio ou uma barreira no caminho para o reino, nem é sequer o caminho para o reino; é a chegada do reino.”
A morte e ressurreição de Jesus é um acontecimento[1] que deu origem a um movimento de seguidores. Seguidores que já não olham para ele apenas como um mestre terreno, mas como a expressão humana do próprio Deus. E a vida destes primeiros seguidores de Jesus era realmente inspirada nos seus ensinos. Foi como se nas margens do Império Romano estivesse a nascer um império[2] alternativo. Um império aparentemente pouco visível e pouco significativo mas que foi permeando os impérios terrenos da mesma forma que o fermento permeia a massa de um bolo (cf. Mateus 13:33).
Desde o século I a comunidade dos seguidores do mestre nazareno continua presente na terra. Por ser composta por homens e mulheres falíveis e por muitas vezes interpretarmos as palavras de Jesus à medida da nossa conveniência pessoal, esta comunidade – ou parte dela – cometeu erros grosseiros que marcaram a história. Mas também incluiu pessoas, muitas delas anónimas, que usaram as suas vidas para servir o Rei, adoptando a agenda deste reino como prioridade, como alvo e como sonho.
[1] Eu sei que são dois acontecimentos mas gosto de pensar neles como sendo indissociáveis, como se de um só se tratasse.
[2] Jesus utilizou a expressão Reino de Deus que para nós é estranha, mas para os judeus daquele tempo estava carregada de significado. Pode soar demasiado críptica e pode até soar contraproducente porque “reino” parece ter qualquer coisa de opressor e de negativo. Creio que no século I a expressão não teria tal conotação negativa. De qualquer forma, mais do que esmiuçar as palavras que usamos, o importante é percebermos o conceito e a natureza deste reino, ou império ou, simplesmente, movimento ou comunidade.
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